A morte da Marília Mendonça precipitou em mim a necessidade de escrever esse texto
Por Chico de Paula
Eu sempre quis escrever um um texto - umas parcas linhas que fossem - que pudesse minimamente explicar nossa relação, enquanto "sertanejos", com a música sertaneja, às pessoas que, por maldade ou por ignorância, acham que nosso gosto é menos "refinado" (seja lá o que isso signifique). Menos refinado, por exemplo, ao dos que gostam de samba, rapp, rock e MPB. A morte da Marília Mendonça precipitou em mim a necessidade de escrever esse texto.
Pois bem, como nos ensina o materialismo dialético, nossos gostos e nossas predileções não são sentimentos inatos. Ou seja, nossos gostos e predileções não estão relacionados a uma característica intrínseca, mas às condições materiais do meio ambiente, bem como aos fatores históricos. Em outros termos, nossos gostos (dentre os quais os musicais) são o resultado do acúmulo de vivências, mas também tem uma relação com a classe social que cada um de nós pertence, bem como às disputas impostas pela sociedade.
"O universo da cultura [no qual se inscreve a questão musical] não é tomado como o reino da fruição estética desinteressada, mas como locus de divisões, barreiras, segregações e conflito de poderes. O gosto é a arena onde essas disputas simbólicas são travadas, onde grupos sociais almejam se distinguir uns dos outros, buscando impor as regras sociais que lhes são favoráveis, em busca de prestígio e reconhecimento e poder", nos lembra Marcelo Garson (Bourdieu e as cenas musicais – limites e barreiras).
Nós, os "os sertanejos", não somos só proletários, mas somos uma espécie de proletários de um país social e culturalmente agrário, embora geograficamente sejamos urbanos. Como consequência, nossos costumes e práticas sociais ainda estão muito ligados às nossas práticas culturais locais, neste caso o grande sertão sobre o qual o Brasil social e culturalmente ainda se assenta.
Isso não quer dizer, obviamente, que nós ignoramos os outros elementos sociais e culturais que disso decorrem, como o conservadorismo que, a propósito, foi fundamental para a ascensão no Brasil de uma ideologia retrógrada, excludente e, por vezes, violenta. Mas reconhecemos esses pontos "fora da curva" sem cair na esparrela de "colocar na conta" do gosto musical pelo sertanejo, evitando de um lado "criminalizar" o ritmo, enquanto nos esforçamos por mostrar que não tem nada nisso que nos defina como menos "sofisticados".
Aqui eu destaco e reconheço a necessidade de uma maior politização da música sertaneja. Com o seu poder de ressonância social, especialmente entre os mais jovens, cantores do ritmo poderiam muito bem utilizar essa visibilidade para falar mais de temas sensíveis à sociedade brasileira, como machismo, discriminação e consumo exagerado e indiscriminado de álcool e drogas. Mas, mais uma vez, isso, por si só não determina um pretenso menor valor do sertanejo, pois outros ritmos também não o fazem.
Neste sentido, tiro o chapéu para a Marília Mendonça que não só teve coragem de se posicionar contra o abismos político no qual nos enfiavamos a partir de 2018, com eleição de Bolsonaro, como retratou em suas músicas questões sociais pouco percebidas. É o caso da música “Troca de Calçada”, cujo a letra retrata o ponto de vista de uma garota que veio a se tornar prostituta pela força das circunstâncias. Diz um trecho da letra da música:
"Se alguém passar por ela
Fique em silêncio, não aponte o dedo
Não julgue tão cedo
Ela tem motivos pra estar desse jeito
Isso é preconceito
Viveu tanto desprezo
Que até Deus duvida e chora lá de cima
Era só uma menina
Que dedicou a vida a amores de quinta
É claro que ela já sonhou em se casar um dia
Não estava nos planos ser vergonha pra família
Cada um que passou levou um pouco da sua vida
E o resto que sobrou, ela vende na esquina."
O sertanejo está, como estão os outros ritmos, no centro das disputas culturais que permeiam a sociedade, não só a brasileira. E me arrisco a dizer que se o funk e o samba, por exemplo, marcam a cena cultural das favelas e da periferia carioca, ao passo que o rapp marca a cena cultural da periferia paulistana, o sertanejo se espraia de forma mais capilarizada pelos rincões do Brasil, marcando a cena musical de forma muito mais horizontalizada do qualquer outra ritmo, o que não significa demérito nenhuma para ninguém.
Fora essa caracterização mais teórica sobre o tema, nos resta apenas lamentar à morte da diva desse grande sertão chamado Brasil. Que a família e amigos da Marília Mendonça se sinta abraçada(os) por todos nós e que suas músicas continuem a alegrar milhões e milhões de brasileiros, sem que possamos perder de vista a necessidade de superarmos nossas mazelas sociais, políticas e culturais que, a despeito do nosso luto de hoje, se assentam no nosso luto de cada dia.
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Chico de Paula é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Políticas Públicas e bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), advogado e jornalista. Natural de Lago da Pedra (MA), radicado no Rio de Janeiro, onde resido desde 1999.